Wednesday, March 28, 2012

E os outros "Bastas!"?


Pronunciou-se o “Basta!” Expressou-se a repúdia às escolhas verbais de um jornal online (ou um “panfleto” no dizer dos lesados). Do cume vieram as palavras sábias e sensatas, acolhidas pelos acólitos como uma dádiva suprema. O “Basta!” é o ultimatum mobilizante dos sectários. É o código de activação da infantaria de reserva. É o grito de guerra e, assim, as faces pintam-se. “Contra os canhões [do Liberal—e outros “Liberais”?], marchar, marchar, marchar…”

Supostamente, é um “Basta!” que intenta, projecta e deligencia destruir para melhor construir, limitar para melhor expandir, contrair para aumentar… Conjetura-se, assim, a novus ordo: afinal o “Basta!” é um “critical juncture,” um ponto de ruptura entre as prácticas lesivas e supletivas ao bom nome. A nova ordem é a de co-existência verbal pacífica. Para o contentor do passado, a violência verbal…

Mas que nao se fique por aqui. E os outros “Bastas!”? Para quando? Para quando o “Basta!” da violência estructural e simbólica que vitimizam um número crescente dos caboverdianos? Para quando o “Basta!” do abuso da coisa pública, principalmente o “Basta!” no uso indevido das viaturas públicas? E, já agora que estamos na onda de “Basta!”, porque não extendê-lo à má-gestão no aparelho do Estado e nas empresas públicas, ao recrutamento nepotista, aos negócios nebulosos, ao anti-patriotismo consumista instrumentalizante do Estado enquanto pagador de contas, etc, etc (a lista é mesmo enorme…). Agora que o “Basta!” já foi declarado, espera­­-se assim que não tão cedo se ouve um “Basta!” ao “Basta!”

Por hoje “Basta!”

Tuesday, March 20, 2012

A falácia da Língua Caboverdiana enquanto língua de comunicação local

A falácia da Língua Caboverdiana enquanto língua de comunicação local
Tenho escrito algures: a questão da lingua em Cabo Verde constitui, em si mesma, a montanha que todos os caboverdianos, mais cedo ou tarde, terão que escalar. Preferencialmente mais cedo do que tarde, para mais cedo encontrar uma solução àquela questão. Nos últimos dez anos, muitos falaram sobre a necessidade da oficialização da língua caboverdiana (LCV). Contra estas vozes, argumentos de vários calibres têm sido construídos. Este pequeno texto procura descontruir um dos pilares argumentativos criados por aqueles que considerem inútil e inoportuno tornar a LCV um dos politolectos (lingua do Estado) do país.

Supostamente, segue tal argumento, a LCV não constituí aquilo que Fishman denomina de language of wider communication (qualquer coisa como lingua de comunicacao mais ampla). Pelo contrário, a LCV é tida como uma lingua essencialmente local e confinado às ilhas do Atlântico (esquecendo, convenientemente, as várias comunidades caboverdianas espalhadas pelo mundo atlântico) e à informalidade. A LCV, assim continua o argumento, é limitada por não ser uma língua de comunicação internacional. Por outras palavras, a crescente inserção das ilhas no contexto global sofreria um duro e (alguns diriam até irrecuperável) golpe caso fosse oficializada a LCV. Um retrocesso terrivel, alguns diriam. Tal argumento, como que um camaleão, tem-se revistido de novas cores adaptativas à situação e à época em que é pronunciado. Mas no fundo, o essencial é o mesmo: a LCV é fundamentalmente uma língua doméstica e estar-se-á a perder tempo/recursos em fazer daquela língua uma língua do Estado.

Primeiro é preciso recordar que a LCV tem sido um poderoso medium de comunicação transnacional—ainda que, no entanto, nao é uma língua internacional. A diferença entre o transnacional e o internacional tem mais a ver com os actores envolvidos: as relacções que não envolvem os Estados ou organizações por estes criados constituem relações transnacionais. Fala-se de relações internacionais quando um dos actores ou é um Estado ou é uma organização inter-governamental.

Pode-se falar de uma ethnoscape caboverdiana (emprestando de Appadurai) para referir à distribuicao transnacional do povo caboverdiano. Ainda que reduzido na dimensão numérica, pode-se muito argumentar que o Mundo Atlântico é o habitat do caboverdiano. Desde o norte a sul do continente Americano, passando à Europa ocidental, e, naturalmente que não se pode esquecer do nosso continente, a presença caboverdiana é nítida. E é neste espaço que a LCV tem assumido um papel de relevo cada vez maior.

Enquanto lingua transnacional, a LCV tem sido um medium de dois canais comunicativos. Primeiro, a LCV é o medium da comunicao diaspórica—tida como fluxo de mensagens, saudades, e mantenhas, entre o país de origem e o país de recepção. No quadro da comunicação diaspórica, pode-se ainda criar dois sub-categorias distinctas, Por um lado, existe o que se pode ser chamado de comunicação diaspórica primária (ou vertical--no sentido de existir uma hierarquia emocional em que o país de origem assume o topo da relação). Tal constitui um processo de transmissão e recepção de ideias (e, em particular, aquilo que é chamado de remessas sociais), sentimentos e experiências entre os caboverdianos nas ilhas e os espalhados pelo mundo afora. Um diálogo entre um caboverdiano residente na Ilha Brava e um outro residente na cidade de Pawtucket, Estados Unidos, é um exemplo da comunicação diaspórica vertical ou primária.

Por outro lado, existe também a que pode ser chamada de comunicação diaspórica horizontal/secundária. Isto tem a ver com qualquer acto comunicativo exercido por dois ou mais membros da comunidade diaspórica caboverdiana residentes em dois países diferentes. Exempli gratia, um diálogo entre uma caboverdiana da cidade de Lisboa com uma caboverdiana residente em Luanda.

Até bem pouco tempo atrás as comunicações diaspóricas dividiam-se em dois grandes campos distinctos em função da esfera de cada língua usada: quando orais (de boca-em-boca, como nas mantenhas ou através de telefone) a lingua a ser usada era a LCV. E, por outro lado, quando escrita (telegramas ou cartas pessoais) era quase o domínio reservado da lingua portuguesa. As modernas tecnologias de informação fizeram aquela distincao dos dominios de linguas fútil. Basta seguir com atencao a um diálogo numa sala de chat entre dois caboverdianos (seja em termos de uma comunicacao diaspórica primária ou secundária) para constatar que cada vez mais usa-se a LCV como medium de mensagem.

O segundo canal da utilizacao da LCV à nivel transnacional tem a ver com as relações que envolvem as ONG internationais ou mesmo agências autónomas de Estados estrangeiros e as populações em Cabo Verde. Em parte equipado por uma nova mentalidade de cooperacao internacional, as grandes NGO internacionais cada vez mais asseguram um lugar de destaque ao chamado saber local no contexto dos projectos a serem assistidos e/ou em cooperação. A aldeia, o bairro, a vizinhança e, raramente, a vila ou cidade tem sido cada vez mais o foco da acção cooperativa transnacional. E os parceiros internacionais têm assumido (correctamente, penso) que os melhores avaliadores dos projectos são os que supostamente irão beneficiar dos mesmos. Assim sendo, é natural a inclusão de inputs dos locais na criação e implementação dos ditos projectos—através do saber local. Sendo que o saber local tem sido criado e difundido através da língua materna a consequência lógica deste processo é a inclusão da língua materna como factor de desenvolvimento. Por este motivo, um número crescente de NGO internacionais concedem formação linguistica aos seus voluntários e quadros em linguas maternas dos paises onde estes irao actuar (programa semelhante é o caso do Corpo da Paz, ainda que nao sendo uma NGO, parte do principio de uma colaboração efectiva e afectiva entreo cooperante e as populacoes locais). Um grande número de falantes da CVL não-nativos constituem aqueles antigos e actuais voluntários de várias NGO internacionais que têm trabalhado com as populações em Cabo Verde.

No entanto, ainda que um medium comunicativo transnacional em crescente uso, a LCV está longe de ser uma língua internacional (isto é, uma língua usada como medium de comunicação oficial e oficiosa entre os Estados e os organismos por estes criados). Talvez nunca venha a ser uma língua internacional. Mas, para que algum dia passe a ser uma lingua internacional terá que primeiro ser uma lingua de um Estado (e nao simplesmente só uma lingua de uma nacao—por outras palavras, tem de verifcar-se um planeamento quanto ao status da lingua).

Tenho lido algures o argument de que o mundo globalizado, como mundo de constante e instantâneo fluxo de ideias, mercadorias, valores monetários, entre outros, é um mundo altamente competitivo. Maior a globalização, maior também são as forças sociais de busca aos raízes identificativos. Ao mesmo tempo, a globalização tecnológica, ou aquilo que Appadurai prefere chamar de technoscape, garante espaços de avanços a micro-culturas e prácticas e línguas locais. Basta ver, por exemplo, como a internet tem sido um verdadeiro sítio de revivência de línguas consideradas em perigo. Mais ainda, as mais avançadas tecnologias de informação facilitam o uso de muitas linguas que há uma década atrás eram consideradas como essencilamente locais. O google translate, por exemplo, permite a tradução quase que instantânea entre línguas como o irlandês (que segundo os dados do Ethnologue tem não mais de que 300,000 falantes) ou a língua basca (que a mesma fonte considera ter cerca de 580,000 falantes).

As traduções da google translate estão longe da perfeição. Mas quem já é habituado a fazer traduções online poderá constatar o avanço desta tecnologia em relação às precendentes (por exemplo, a babel translation). Dito isso, e sabendo que a lógica do capitalismo global força as empresas a procurar novos mercados, sob o risco de serem absorvidos pela concorrência, penso que é uma questão de tempo para vermos outras línguas adicionadas ao google translate (ou um outro despositivo criado por alguma empresa concorrente à google). A troco de exemplo, é de recordar aqui que já existe um google Cabo Verde (www.google.cv). Uma futura inclusão da LCV na lista da goodle translate dependerá somente dos caboverdianos—e, aí, o processo de internacionalização da nossa língua tornar-se-a mais fácil.

P.S. A defesa da LCV em condição nenhuma deve ser entendida como um ataque a língua portuguesa, a outra língua de bastante uso e história nas ilhas. Sempre defendi multi-lingualismo e, daí opor à qualquer práctica e/ou idea limitativa. Penso que a oficialização da língua permitirá um salto quantum da LCV, aumentando consideravelmente a esfera da sua actuação assim como da sua funcionalidade (e, pode-se até argumentar, melhor o entendimento da língua portuguesa—um conhecimento real das duas línguas parte do princípio da compreensão da “fronteira linguística” entre aquelas duas línguas)