Friday, March 25, 2011

Descontruindo O Mundo de Adérito Barros

Quase nunca presto atenção às declarações em prol do retorno ao passado politico de dependência à Portugal. Tais declarações públicas, pelo menos as lidas pela minha pessoa até recentemente,, quase sempre emanam dos mesmos suspeitos: os membros e os acólitos da antiga sub-elite colonial, lusotropicalista e lusófila. Quando um jovem pós-colonial, no sentido cronológico e não teórico ou ideológico do termo, argumenta no sentido de um retrocesso politico (isto é, irredentismo vis-à-vis Portugal) já as coisas mudam de figura. Sustentado de um lusofilia, ou mesmo de um eurofilia exarcebado, Adérito Barros, no artigo publicado no Forcv online (“Pensar Independência…Pensar atitudes Cabral”), admite que Cabo Verde deve repensar a independência por não ser tão economicamente vantajosa quando comparada com a possível inclusão política no espaço luso-europeu.
Tendo lido muito com cuidado e atenção o texto de Barros, não pude conter-me senão contra-argumentar e descontruir os preceitos básicos (falaciosos, diga-se) por ele enumerados. Muito teria que escrever. No entanto, resumo o escrito a interpretação do conceito chave do texto de Barros, nomeadamente, o de independência, assumindo um postura cabralista a nível epistemológico em geral.

A independência de Barros
Barros começa por definir o conceito de independência, baseando-se numa perspectiva puramente perceptivo: “é o estado psíquico ou mural (sic) em que nós sentimos verdadeiramente livres.” (meu itálico). O sentir e não o ser é que constitui a pedra angular da construção conceptual de Barros. A independência na acepcão de Barros é uma construção psíquico-mental individual. O corolário da proposta definição é que a independência pode muito bem não ser uma realidade empírica—e nem precisa de ser! O que importa é que o individuo, enquanto ser que sente, sinta que é independente.
Em sua defesa Barros poderia muito bem contra-argumentar ao escrito no parágrafo anterior sustentando uma perspectiva teórica pós-moderna, cuja suposição básica é a negação de uma realidade estranha e alheia ao imaginário individual. O empírico não existe em si, e o que de facto existe são interpretações, sentires ou abordagens do involvente. Barros, no entanto, seria atraiçoado pela sua própria conclusão baseada em premissas argumentativas fortemente materialistas e economicistas.
Barros começa por analisar o conceito na perspectiva do indivíduo. Na proposta definição, ser-se independente é não estar-se sob nenhuma autoridade. Hoc opus hic labor est. Por ser o indivíduo um ser social, e não uma besta que pode viver sozinho como nos lembra Aristóteles, o mesmo (ou a mesma) nunca escapa a um ou outro tipo de autoridade (material, moral, espiritual ou abstracta). Particularmente, há que notar uma “autoridade” abstracta moral superior que transcende ao indivíduo. A independência, a nível individual, significa menos não ter que “dar satisfação” (a frase é dele e é tomada por empréstimo) a ninguem do que o indivíduo ser o que determina, estabelece e constroi a forma e o conteúdo da satisfação (sob pena de ser ostracizado ou de ser considerado um pária social). Mais ainda, ser-se independente significa re-formular e reconstruir a hierarquia dos grupos aos quais deve-se submeter a satisfação dos actos (ou omissões) cometidos. Ser-se independente dos pais pode bem significar não ter que dar satisfação aos mesmos; mas não significa que não temos que dar satisfação a ninguem. Ao invés, damos satisfação aos amigos, familiares, vizinhos, colegas de trabalhos, aos nossos chefes e patrões, por ai adiante.
A definição proposta, além de ser construída na base de uma tautologia desnecessária, confunde a independência com libertinagem ou devassidão, quando a sua definição centraliza no não ter que dar satisfação a ninguém. A independência, individual ou colectiva, é antes de mais nada a assumpção de responsibilidades. Tal implica necessáriamente uma obrigação de ter que “dar satisfação.”
No que se refere ao corpo colectivo, Barros omite—ou pelo menos não clarifica--o conceito de independência. Talvez pense que o conceito tenha o mesmo valor analítico quando aplicado tanto a uma análise a nivel individual ou a nível colectivo. No caso deste último, a “independência” de Barros simplesmente é inaplicável. Aliás a continuidade biológica e moral implica categorica submissão aos valores socialmente construidos da moralidade e da ética. Enquanto corpo comunitário somos sempre obrigados a “dar satisfacao” a uma autoridade moral superior. Tal autoridade é o cimento que mantém o edifício comunitário total e pleno. A partir do momento que a dita autoridade perde legitimidade de exercer supremacia ou novos valores surgirão demandando novas submissões ou simplesmente a comunidade decai e desmantela-se. No que toca às comunidades humanas, a independência, garantindo, sustentando e desenvolvendo o duplo e intímo processo de construção do Estado e da Nação, constitui, em si mesma, uma contribuição singular de qualquer grupo humano para o processo civilizatório e histórico global. Daí que implica ter que “dar sataisfacao” à história humana e às gerações vindouras.

O Conceito Cabraliano de Independência
Um dos problemas actuais de Cabo Verde tem a ver com o que se pode designar de analfabetismo da história, isto é, a ignorância crescente sobre o processo histórico das ilhas de Cabo Verde, designadamente sobre o período tardo-colonial. Surpreendente é a falta de conhecimento e entendimento (ou mesmo de disinteresse) dos escritos e das prácticas políticas de Amílcar Cabral, o pai das nacionalidades de Cabo Verde e de Guiné-Bissau (não confundir Cabral iconográfico que é muito comum com o entendimento das suas teorias). Mister se torna re-estabelecer uma nova pedagogia baseada naquilo que podemos chamar de Cabral literacy.
Falar de independência em Cabo Verde implica falar de Cabral. Por esta razão, deve-se revisitar a noção de independência no pensamento de Amílcar Cabral. Cabral, desde cedo, frisou a necessidade de basear a luta de libertação em dois princípios guias fundamentais: primeiro, a noção de que a prática (praxis) deve ser entrelaçada com a teoria (theoria). A teoria é o que gera ordem e planeamento da práctica, e a práctica, por seu turno, é o que garante situações empíricas que orientam o desenvolvimento teórico. Daí que a luta de libertação nacional, na perspectiva cabraliana, foi também uma luta ideológica e teórica, tendo Cabral desenvolvido uma das mais coerentes teorias anti-colonial e pós-colonial. O segundo princípio cabraliano, intimamente ligado ao primeiro, relaciona-se com o conhecimento da realidade empírica, ou aquilo que Cabral chamou de realidades concretas. Na acepção de Cabral, qualquer decisão política deve, antes de mais, ter em consideração o ambiente social sobre a qual a dita decisão irá reflectir. Assim sendo, as decisões políticas adequadas serão aquelas que estão em sintonia com o ambiente social. Isto tem muito a ver com aquilo que Ajume Wingo, filósofo camaronês, chama de living legitimacy (literalmente traduzido “legitimidade vivente”), isto é, quando o social concreto é o ponto de partida e de influência ao politico, e não o vice-versa.
Foi com base nestes dois princípios que Cabral desde logo se demarcou do que acontecia nos restantes países limítrofes da Guine-Bissau nos anos 1960 e 1970. Cabral, astuto politico, de inteligência rara e aguda, percebeu e bem que a independência nunca poderia ser considerado como o ponto de chegada. Demarcou-se, então, da influência de Nkrumah que advogava “seek ye first the political kingdom and things will be added unto you.” O erro de Nkrumah foi o de pensar a independência como um mecanismo automatic cujo alcance provoca imediata transformação sócio-económico—na segunda metade dos anos 1960 Nkrumah viria a reformular tal princípio no livrete Neocolonialismo, a Última Etapa do Imperialismo.
Ao invês, a independência é apenas o ponto de partida. O neo-colonialismo francês vis-à-vis às antigas colónias teria mostrado que a descolonização pode ser somente uma “independência de bandeira.” Por este motivo, Cabral elaborou a distinção válida entre a independência nacional e a libertação nacional. O objectivo ultimo de Cabral era a libertação por ele definida como “libertação total das forças productivas” nacionais. Libertação nacional é acima de tudo social e económico, permitindo criar as condições que permitam estabelecer bases sólidas de modernização e do progresso, sem contudo virar costas ao passado. A política de modernização mistura-se, assim, com a política de autenticidade.
A independência não deve ser encarada como um fim em si mesmo; ela deve, pelo contrário, ser um inicio (ou um meio) com vista a atingir objectivos que favoreçam o corpo politico. Daí que Cabral enfatizou desde sempre o princípio de luta. Luta, no entender de Cabral, involve muito mais do que a luta armada contra o colonialismo nas matas da Guiné-Bissau, durante quase quinzes anos. Na verdade, a luta armada, na perspectiva cabraliana, seria apenas a mais fácil das várias lutas a serem travadas pelos povos de Cabo Verde e da Guiné-¬Bissau. A luta é um fenómeno sócio-político dinámico, multi-dimensional e constante. A luta pela modernidade e desenvolvimento, a ser travado no periodo pós-colonial, é de longe a mais díficil. Não menos díficil também é a luta contra nós mesmos, contra o oportunismo, conformismo ou quaisquer outras atitudes (incluindo a mentalidade assistencialista claramente patente no texto de Barros) que atrapalham o processo desenvolvimentalista nacional.
Acresce , o conceito cabraliano de luta é centrado no esforço próprio da comunidade em questão (na terminologia actual em voga, diria que é baseado no empoderamento—empowerment—da comunidade). Qualquer acção (política, económica ou de outro tipo) tem de basear na agência e iniciativa do colectivo, o qual espera beneficiar-se da dita acção. Dito por outras palavras, a luta (política, armada, económica, etc) deve ser travada e liderada pelo colectivo e deve-se evitar que os benefícios sejam gozados pelo colectivo sem que este tivesse lutado para tal. Por este motivo, a luta é um processo dinámico de reconstrução psicológica baseado na ideia que a melhor recompensa é aquela que é fruto da acção do grupo (daí que desde sempre Cabral negou a participação directa de qualquer individuo/força estrangeira no processo liberatório. O processo liberatório deve não só ser nacional (quando o objectivo é alcançar avanços politicos e económicos para a comunidade nacional) como também deve ser nacionalizada (quando a iniciativa de condução do processo é controlado pelos próprios nacionais ). Caveat aqui seria necessário: isto está longe de ser um provincialismo barato. A ideia de nacionalização da luta é construtiva e é aberta a ajudas dos estrangeiros (desde que tais assumam posições secundárias ou de suporte—não mais do que isso! Aqui, cita-se, a título de exemplo, o caso da recusa da incorporação do líderes do movimento civil norte-americano, Stockely Carmichael, aka Kwame Touré, entre as filheiras do PAIGC).
Ao mesmo tempo, a dita nacionalização da luta permite auferir ganhos significativos de várias ordens para a comunidade. É em si mesmo ser um processo fundamentalmente sustentado naquilo que Platão chamava de thymos, isto é, a componente da alma humana que demanda reconhecimento. Subsequentemente, estimula a auto-estima colectivo, o elemento catalizador par excellence de qualquer processo desenvolvimentalista nacional.
A luta—principalmente quando armada—é o processo que possibilita a construção nacional. A necessidade de um frente nacional implica imaginar a comunidade como um corpo colectivo, de história e futuro comuns para além de constituir, em si mesma, um conjunto de acções e práticas que permitem a transferência das lealdades primárias (étnicas, regionais, etc) para o nacional.
Da Independência à Construção
A inovação cabraliana reside ainda no estabelicimento da independência como um ponto de partida, ou se quiser, como um meio e nunca como um fim. A independência nacional seria um instrumento de reclame da agência histórica, isto é, a verdadeira aplicação do princípio de auto-determinação quando qualquer história é localmente determinada. Essa agência histórica, conquistada, mas no entanto, longe de ser total ou totalizante, é o suporte de qualquer comunidade nacional. Já tinha mencionado o conceito platónico de de thymos. A independência, neste sentido, é uma luta pelo reconhecimento, na acepção hegeliana do termo: é só com uma luta vitoriosa que o antigo mestre reconhece o antigo subordinado como igual.
O argumento de Barros simplesmente ignora o elemento thymos. Pelo contrário, é um argumento puramente economicista: é o estado da economia política que deveria ditar a política do Estado. O segundo deve submeter-se ao primeiro. O re-pensar a independência nacional é baseada em elementos materiais e económicos, como se a vida política fosse simplesmente o reflexo da vida económica (a la Marx): o homo economicus deve sobrepor a qualquer outro tipo do ser humano: homo politicus, homo culturalis, por ai adiante. A abundância material deve dominar as vontades imateriais.
Mas isto não equivale declarar que a economia não é uma variável de significante relevo na vida política. A independência, para o continente africano em geral, e para as ilhas de Cabo Verde em particular, foi sempre pensada também em termos de construir um atalho para a modernidade económica proíbida pelo pacto colonial. Claro que como bem comentou Goran Hyden não há “atalhos para o progresso.” O progresso é uma luta constante e atingir-se-á através de uma ética baseada no esforço colectivo das mulheres e dos homens envolvidos, mobilizados e conscientizados na construção comunitária.
In cauda venenum, o re-pensar da independência que Barros propõe é sustentado por uma mentalidade assistencialista quando devia-se aceitar o desafio generacional de continuar e aprofundar a luta. Tudo o que a União Europeia até hoje conseguiu podemos também conseguir, desde que, de facto, lutemos para tal. Deturpando Engels diria que “a luta criou a mulher e o homem…”