Tuesday, August 12, 2008

Confusões et alia: 10 pontos contra o anti-ALUPEC

Estas linhas constituem não mais de que um artigo de refutação ao escrito apresentado por Senhor Napoleão Andrade (“Nação, Regionalismo e Identidade Nacional,” Liberal Cabo Verde online de 7 de Agosto de 2008). Ainda que o leitmotiv deste artigo refere centralmente a controvérsia gerada pelo ALUPEC, comecaria este artigo com um caveat, deixanado bem claro que tal não é um texto de linguistica ou de filologia, áreas que não passo de um mero leigo. Mas, a meu abono, manterei distância à uma discussão da substância filológica de tal alfabeto. Digo que suporte o ALUPEC no sentido que tal pode servir como um instrumento de padronização da língua caboverdiana. Como tal, penso eu, de tal instrumento ser um veículo importante no projecto de modernização. No mundo de hoje, que muitos falam de convergência, padronização, é assim necessário a standardização do que é nosso. Particularmente por existe um grande número de caboverdianos no mundo afora, o Estado de Cabo Verde deve apostar nesta padronização – para não correr o risco de desenvolvimento eclético de varias maneiras de escrever o crioulo caboverdiano.
Um problema que sempre surge em relação ao ALUPEC constitui o facto de ser (erronicamente) percebido como projecto hegemónico do crioulo “badiu.” O ALUPEC apenas regulariza maneira de escrever, sem intrometer nas variâncias regionais. Em qualquer país do mundo, a língua nacional tem variações à nível regionais. Mas nem por isso, deixa-se de padronizar. Um exemplo conhecido por muitos é o caso de Portugal: sabe-se que os nortenhos pronunciam “binho” quando referem ao “vinho;” mas nem por isso escrevem “binho” quando intentam referir escritamente ao “vinho.” Padronizando implica trazer regras que permitam transcender as variações regionais.
Facilitando a compreensão do leitor, avanço em pontos:
1. Para o Andrade, a lingua caboverdiana (ou a lingua crioula) é a “herdeira legítima das palavras portuguesas,” e ipso facto construir um alfabeto puramente caboverdiano não passa de uma aventura “desnecessária” (sic). Tal compreensão simplesmente não tem cabimento - usando um vulgarismo brasileiro. Lógicamente é um classico exemplo da ditto redutio ad antiquatem. Trocado em miúdos: X sempre foi feito assim, então qualquer mudança à X é, ipso facto, errado. O argument assim construído não é direcionado à qualquer (possível ou potencial) falha endógena ao sistema de ALUPEC, mais antes é construido no sentido de chamar atenção ao que sempre foi o caminho tomado. Esta intentação conservadora, no entanto vai, contra o “a evolução no tempo,” que o Andrade menciona. Infelizmente careço de informação que poderá iluminar o leitor sobre a escolha alfabética do ALUPEC – particularmente a substituição do “C” pelo “S.” Tal explicação acho ser reservada aos especialistas. Mas o que aqui refuto é a ideia que no português é assim, e assim deve ser no crioulo caboverniano.

2. O alfabeto latim, do qual herdou o português, passou por fases de mudanças e incorporações de novas letras, de modo a facilitar a comunicação. Basta lembrar que nos primeiros tempos do alfabeto latim (ou melhor, romano) não existia simplesmente a letra “J.” Assim, a letra”I” funcionava como símbolo fonético tanto ao “I” como a “J.” Daí que o célèbre “título” imputado ao Jesus Cristo pelos romanos lê-se “INRI” – “Iesvs Nazarenvs Rex Ivdaeorvm,” Jesus de Nazaré, rei de Judeus ( note-se ainda que a palavra “V” fazia o papel de “U”). Se tivesse empriosanado na tradição e no passado, o alfabeto latim (e por consequente o alfabeto português) teria graves problemas em termos de simbolização escrita de vários vocábulos modernos.

3. Mais ainda, de ponto de vista estructural, o alfabeto não é mais do que um conjunto de símbolos construídos para a facilitação da comunicação (escrita principalmente). E simbolos, sou levado a crer por antropólogos e sociólogos, não passam de “representações sociais,” ou melhor “construções sociais.” Assim sendo, nada de ahistórico existe em qualquer simbologia. São, isso sim, uma criação inserida numa história, tornados “sociais” através de convenções, formais ou informais (que podem até ser impostas). O sine que non da implementação social de qualquer alfabeto (ou de qualquer simbologia in toto) é exactamente a existência de uma convenção. No mundo moderno, caracterizado pela constante racionalização do corpo político, tal papel ficou reservado ao Estado (através de uma burocracia especializada no assunto com o apoio de uma “comunidade epistemológica”), agente historicamente activo na construção nacional. A título de exemplo, o alfabeto português que nós conhecemos é oriundo de uma convenção, a chamada Ortografia Nacional de 1911. Antes de tal decisão (governamental, diga-se de passagem), a palavra farmácia escrevia-se “pharmácia”, por existir no português antigo o “ph.”

4. Lembre-se ainda, a propósito do alfabeto português, uma convenção foi aprovada recentemente – o dito Novo Acordo Ortográfico de 2005,o qual, saliente-se, acrescenteu três letras ao alfabeto português – nomeadamente, K, W e Y. Tal convenção é prova que a lingual, falada ou escrita, nunca deve ser encarcerada pela tradição. Pelo contrário, o desenvolvimento social traz consigo desenvolvimento comunicacional de tal maneira que só um correspondente desenvolvimento lexicológico – que às vezes implica novas letra ou novas combinações de letras – poderá permitir expressar o estado das coisas. Tudo isto para mostrar que se o português (ou o espanhol ou qualquer outra lingua) pode sempre criar, recriar, eliminar ou acresentar novas letras no alfabeto ou mesmo uma nova lexicografia. E já agora porque não o crioulo caboverdiano? Parece-me, portanto, mais lógico esperar de um técnico – preferencialmente qualquer um ligado ao projecto ALUPEC – a explicação do rationale da escolha alfabética. Parece-me que os técnicos do ALUPEC optaram pela simplificação e padronização – passo fundamental para qualquer acção comunicativa escrita.

5. O Andrade ainda escreve que “[p]ara um aluno que irá aprender ALUPEC terá várias barreiras na aprendizagem do português, francês e inglês, uma vez que será consumido e atrapalhado pelas regras inventadas.” Tal causalidade, além de ser ridícula, carece de suporte empírico ou mesmo teórico. Gostaria de saber em que estudos empíricos baseou o Andrade para tal conclusão. Se não em empiricismo algum, que teoria epistemológica foi o autor basear? Mais ainda, tal proposição assume a fraca capacidade intelectual dos estudantes caboverdianos. Ou será que a mente do estudante caboverdiano é assim tão fraco, que não consegue adaptar às “novas regras”? Já agora, será que estes mesmo estudantes irão ter problemas com as “novas regras” do português, como acordado no Novo Acordo Ortográfico de 2005? (um simples parentêsis para alerter ao Andrade que tanto o francês como o Inglês -como qualquer outro idioma do mundo contemporâneo - constitutem uma sucessão de “novas” regras).

6. O ALUPEC, na acepção de Andrade, não passa mais do que uma “pedagogia do oprimido,” “[inventora] de uma lingua de escravos.” Tal afirmação além de ser imprecisa, é historicamente errada. O escravo que habitou as ilhas de Cabo Verde desenvolveu uma forma singular de comunicação oral, nunca, no entanto, desenvolvendo uma práctica escrita. Talvez o caracter pró-escravo que Andrade refere deve-se ao facto do ALUPEC ser baseado, em parte saliente-se, na construçã0 fonética de palavras. Ora, o ALUPEC é a fase mais recente de um processo de construção de língua escrita no pós-colonial, cujo o primeiro passo foi o conhecido Colóquio Linguístico de Mindelo de 1979. É sabido que neste ditto colóquio, dominou-se a perspectiva pró-fonémica. No entanto, a perspectiva pró-etimológica dominou o Forum Lingístico de 1989. O ALUPEC, criado em 1994, é a síntese dialéctica destas duas perspectivas de construções ortográficas (sobre o assunto vide Marlyse Baptista The Synthax of Cape Verdean Creole). Assim sendo, o ALUPEC não é a língua escrita da “senzala,” como entende o Andrade. E mais ainda pretende demonstrar a sua distância à língua de “casa grande.” No entanto, aceita como princípio básico, penso eu, a concordância comunicativa entre estas duas localidades históricas.

7. Talvez a intensão dos técnicos responsáveis pelo ALUPEC seja, como Nguigi wa Thiong’o, “descolinizar a mente,” por assumir com Fanon que uma língua Parte de tal estratégia implica a ascenção do crioulo em paridade com o português – ao invês da tradicional dicotomia entre “lingua nacional” e “lingua official” (sobre isso vide Batalha “The Politics of Cape Verdean Creole”; Dias “Língua e Poder: Transcrevendo a Questão Nacional”. É bem provável que o Colóquio Linguístico de Mindelo de 1979 tenha sido influenciado por um Pan-Africanismo radical. Afinal das contas o ambiente de então proporcionava tal ideologia. Mas depois do dito colóquio, outros encontros foram levados à cabo, resultando, como notado acima, na criação de ALUPEC em 1994.

8. É preciso ainda notar que o ALUPEC não é anti-português, como muitos assumem.A implementação de tal regra não significa que vamos ter que eliminar o português. O ALUPEC, julgo eu, ser um projecto para o futuro. Por isso, deve ocasionar entre nós uma certa confusão por estarmos habituados a uma certa maneira de escrever. O ALUPEC padroniza e sistematiza. Uma vez implementada, divulgada, socializada e internalizada pelas novas gerações (principalmente), as “novas regras” passarão ser simplesmente “regras.”

9. Afirma ainda o Andrade que “[s]istematizar o ensino a maneira do A,B,S será perigoso, porque trás [sic] na sua PEDAGOGIA DE OPRIMIDO um certo racismo africano, fenómeno altamente perturbador para uma nação mestiça.” Como argumentei acima o alfabeto não é mais do que um conjunto de símbolos com o objectivo de facilitar a comunicação. É preciso muito estudo antes de implementar um determinado alfabeto – como uma qualquer outra política pública. Mas, por outro lado, deve existir um argumento lógica e filologicamente válido da subtração do “C” do alfabeto da língua caboverdiana. Bem espero que os técnicos e estudiosos atrás do projecto de ALUPEC não tenhan criado tal sistema simplesmente por causa de “ briu di korpu,” fazendo uso de um cliché do crioulo caboverdiano. Antes de ser uma “pedagogia de oprimido,” como afirma Andrade baseando na célebre frase de Paulo Freire, o ALUPEC é antes de mais nada um instrumento contra o constante reprimir do crioulo caboverdiano – divulgado, por exemplo, em clichés como “kriolu kabuverdianu ka tén regra.” Pois é exactamente a imputação de regra (padronização) ao crioulo que é a função primária do ALUPEC.

10. O facto da nossa língua ser uma “herança” do português, não significa que não se pode fazer alterações ao alfabeto por nós herdado. A título de exemplo, tanto o espanhol (ou castelhano, como prefere alguns) como o alemão fazem uso do alfabeto latim. Mas nem por isso recusaram de fazer alterações (ou melhor, mais uma introdução que alteração própriamente dita), facilitanto a comunicação (No espanhol, o “Ñ” e no alemão o “β”). Mas nem por isso ouve-se dizer que o alfabeto espanhol ou o alemão é ( foi) em si uma revolta à hegemonia romana-latina. Mais ainda, Andrade parece conturbado porque, em acordância com o ALUPEC, a palavra “casa,” por exemplo, é escrito “kasa.” Uma vez mais, a escrita é uma simples convenção. Tanto o português como o espanhol herdaram do latim e herdam, como tal, um conjunto de vocábulos da língua que foi falada por Júlio César. Entre os vocábulos herdados encontra-se o pronome latin “quails.” Entretando, passando às duas línguas ibéricas, o Português optou por “qual” ao passo que o espanhol optou por “cual.” No caso português, a perspectiva dominante (pelo menos no exemplo acima) foi a pró-etimológica, ao passo que os castelhanos optaram pela perspectiva pró-fonémica.